Pandemia. Uma palavra que antes associava a “história” é agora sinónimo de “realidade” para Mariana Meireles, médica do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa. A natural de Paços de Ferreira, de 33 anos, admite que o último ano foi o mais difícil da carreira e que a pôs à prova.
Depois de um ano desgastante de luta contra a Covid-19, Mariana Meireles conta que houve momentos complexos, sobretudo os vividos em Outubro de 2020, quando o CHTS chegou a ter 10% dos doentes internados do país. “O mundo caiu-nos em cima. De repente os doentes eram tantos e tão graves que rapidamente o Serviço de Medicina Intensiva deixou de ter capacidade de acolher todos os que precisavam”, recorda. Apesar disso, salienta, “a Área Dedicada à Covid-19 1 salvou muitas vidas!”.
Hoje assinala-se um ano do registo do primeiro caso oficial de Covid em Portugal.
Médica “por acaso, mas “realizada”
Mariana Meireles confessa que a escolha pela área da saúde “foi um acaso” na sua vida. “Na realidade sempre quis enveredar pelo ensino mas, na altura, a probabilidade de desemprego era elevada e acabei por reconsiderar. Neste momento não me vejo a trabalhar noutra área”, reconhece a pacense. “Desde que decidi ser internista soube que cada dia ia ser um desafio: cada doente é um puzzle! Não esperava que fosse tão desgastante, mas também não esperava que me fosse sentir tão realizada”, afirma.
Tirou o curso no Instituto de Ciência Biomédicas Abel Salazar na Universidade do Porto. Passou depois pela Unidade Local de Saúde do Alto Minho, onde fez o internato de formação geral, e pelo Centro Hospitalar Universitário do Porto, onde realizou o internato de Medicina Interna e se diferenciou na área das doenças respiratórias.
Desde 2019 que está no Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa. “O Serviço de Medicina Interna é o local por excelência onde devem ser internados os doentes mais complexos: aqueles que têm várias doenças ou aqueles que têm apenas uma mas que afecta vários órgãos. Um internista tem a capacidade de concentrar o conhecimento de várias especialidades médicas e de tratar o doente de uma forma global”, explica a médica.
Foi preciso abdicar e readaptar
Há um ano na linha da frente, Mariana Meireles assume que o percurso tem deixado marcas negativas, mas também muitas positivas e que tem sido preciso “abdicar” de si própria e dos seus para dar o apoio necessário aos doentes e familiares.
Já esteve infectada, ainda que sem gravidade, e já foi entretanto vacinada. É nas vacinas que coloca “a esperança de retorno a uma vida mais normal”. De parte ficou sobretudo a vida pessoal. “No início evitava visitar os meus pais, por exemplo. Mas a situação teve de mudar: andamos nisto há um ano”, explica. “Passo tempo essencialmente com a minha família nuclear: o Natal foi passado apenas com eles, a passagem de ano o mesmo, há um ano que não há festas de anos, não vai haver Páscoa. São limitações que impusemos pelo bem de todos!”, dá como exemplo.
Quando a Covid-19 chegou ao país, foi preciso readaptar, à semelhança de outras áreas, também o Serviço de Medicina Interna, onde exerce funções. “Numa fase inicial tivemos que suspender a atividade na consulta e concentrarmo-nos no serviço de urgência e no internamento. A primeira vaga foi complicada pelo volume de doentes que recebemos e, principalmente, pelo desconhecimento que havia acerca da doença. Sentíamos que as pessoas acorriam à urgência apavoradas com o que viam na televisão. Foram muitas horas de trabalho (muito além do suposto), a fio, para garantir que não deixávamos nenhum doente para trás”, conta a médica. A falta de recursos humanos, reconhece, foi a principal dificuldade.
A profissional de saúde diz que nunca encarou a pandemia com “medo”, mas antes com “respeito”. Acima de tudo como um desafio que era preciso superar.
“Por muito que nos tivéssemos preparado, nada fazia prever a situação em que de repente ficamos”
Se na primeira vaga, os doentes eram, na maioria, “mais idosos e mais ligeiros”, recorda a médica, na segunda vaga tudo mudou. “Eram muitas pessoas jovens e muito mal”, sustenta, acrescentando: “Em Outubro de 2020 o CHTS foi apanhado na situação mais complexa que vivi profissionalmente”. Ficaram com “o mundo em cima”.
“Por muito que nos tivéssemos preparado, nada fazia prever a situação em que de repente ficamos. Das 26 camas da unidade, 14 passaram a ter telemonitorização. Contactamos todas as empresas que conhecíamos para alugar ou comprar ventiladores e equipamento para oxigénio de alto fluxo, todos os que estivessem disponíveis! Médicos e enfermeiros fizeram formação para saber trabalhar com todos estes dispositivos novos. Fizemos muitos protocolos para trabalharmos todos em sincronia. Fizemos panfletos para explicar aos doentes qual era a melhor posição para dormir ou que exercícios respiratórios e musculares deviam fazer: o papel deles é fundamental quando se enfrenta uma doença como esta e com esta gravidade”, descreve a internista.
O trabalho foi feito em conjunto com enfermeiros e auxiliares e com o Serviço de Medicina Intensiva e a Medicina Física e de Reabilitação. A meta era só uma: salvar vidas. E houve frutos, garante. “Já recebemos quase 200 doentes desde Outubro de 2020. Só cerca de 20% destes precisaram de Cuidados Intensivos. Salvamos quase 80% dos doentes que admitimos”, adianta.
“Os doentes reconhecem o nosso trabalho, agradecem e não raras vezes acabamos todos de lágrima no olho”
Cada dia na Área Dedicada à Covid-19 é desafiante e desgastante para todos os profissionais de saúde.
“É difícil ver pessoas activas e lúcidas, todos os dias, em situações tão graves e, muitas vezes, irreversíveis. Pessoas que quase sempre nem têm noção da gravidade da sua situação porque por muito baixos que sejam os níveis de oxigénio no sangue eles dizem que não têm falta de ar (e não têm de facto!). Não são um ou dois… são quase todos! A pneumonia pela Covid-19 é assim. Deve ser o único aspecto em que é misericordiosa…”, aponta a médica de Paços de Ferreira.
Para os enfermeiros e auxiliares, os que passam mais tempo junto aos doentes, a situação é ainda mais complexa, diz. “É difícil ver os nossos enfermeiros a pedirem para hoje não ficarem encarregues do doente X ou Y porque emocionalmente já não aguentam. É difícil querer colocar um ventilador a um doente e não o ter. É difícil gerir as expectativas das famílias… ainda mais por telefone. Felizmente as famílias são muito compreensivas e pacientes”, explica, referindo que para colmatar essa falta de contacto físico se esforçaram por fazer videochamadas “para que o doente se sinta acompanhado pela família”. E quando “as ‘coisas’ não estão a correr bem” convidam a família a visitar.
“Toda a equipa tem dias bons e dias maus. Trabalhar na ADC 1 tem tanto de duro como de apaziguador: saber que cada doente, corra bem ou corra mal, teve o melhor tratamento possível com o máximo de humanidade. Depois há os casos felizes (que felizmente são em maior número!). Cada alta que damos é uma vitória! Os doentes reconhecem o nosso trabalho, agradecem e não raras vezes acabamos todos de lágrima no olho”, conta a profissional de saúde.
Actualmente, o serviço começa a chamar os doentes que estiveram internados para uma consulta de reavaliação. “Temos notado que muitos doentes ficam com algumas sequelas, principalmente a fadiga. Queremos ver como é que eles recuperaram não só do ponto de vista respiratório, mas também cardiovascular e psicológico. Sabemos que vamos encontrar muito doentes com fadiga crónica, ansiedade, depressão e até mesmo stress pós-traumático. Temos que identificar e intervir nestes problemas. Não faz sentido salvar vidas se depois ‘as vidas’ não terem qualidade. Mais uma vez o papel holístico e transversal da Medicina Interna. O trabalho que fazemos tem que ser mais importante que o medo!”, defende Mariana Meireles.
“Marca-me cada doente grave que tratei, independentemente do desfecho: eles passam muito tempo connosco”
Passado um ano na memória vão ficando alguns casos. “Os doentes que me lembro são habitualmente aqueles que mais me puseram à prova enquanto médica: os mais complexos, os mais graves, os que levei para casa no pensamento (“o que mais posso fazer pela dona X ou pelo Sr. Y”), os que puseram à prova as minhas emoções, os que sobreviveram e os que perdi”, admite a médica. “Marca-me cada doente grave que tratei, independentemente do desfecho: eles passam muito tempo connosco”, acrescenta.
Já a morte é algo sempre muito presente, sobretudo na unidade em que trabalha. “É duro! Nós aprendemos a proteger-nos… tem de ser: não podemos dar uma má notícia a um familiar ou a um doente e a seguir começar a chorar. Essa é a altura em que quem está frágil precisa de segurança”, salienta.
Entre as muitas histórias que a marcaram conta a de uma doente que estavam a tentar convencer a fazer reabilitação. “Disse-lhe que tinha que me dançar o ‘malhão’ dentro de três dias. Ela respondeu-me que não sabia o que era o malhão. Naquela enfermaria estavam quatro doentes. As duas senhoras da frente, envergonhadas provavelmente, também disseram que não sabiam, mas lá do cantinho começou um doente a cantar e dançar na cama a dita música. Conversa puxa conversa descobrimos que o senhor gostava de Gisela João. Ele estava muito mal. Quando podíamos, púnhamos um fadinho a tocar para o reconfortar. Todos achamos que ele ia morrer. Teve alta do hospital. Foi uma das nossas maiores vitórias. Quando vier à consulta vai ter que dançar o malhão!”, brinca.
Há muitos outros doentes que marcaram pelos sentimentos que despertaram e esses, confessa, não consegue “pôr em palavras”.
Apesar de tudo o que tem vivido, Mariana Meireles diz que tem conseguido lidar com a situação de forma “o mais saudável possível”. “Todos os profissionais de saúde têm estado sobre muita pressão, é um facto. Principalmente os que trabalham no serviço de urgência e no internamento. Eu sinto bastante apoio e respeito por parte da população, mas, sinceramente, acho que ninguém que não trabalhe num hospital tem noção da verdadeira dimensão do problema”, afirma. Por isso, e mesmo sentindo reconhecimento da população em relação aos profissionais de saúde deixa um apelo: que se cumpra o isolamento social e que haja mais “responsabilidade social”.