Verdadeiro Olhar

Casa do Gaiato de Paço de Sousa continua a ser “de rapazes para rapazes” (C/VÍDEO)

Quando a Casa do Gaiato de Paço de Sousa foi criada, há 75 anos, pelo Padre Américo, fundador da Obra de Rua, começaram por ser poucos os rapazes naquela quinta. Mas, rapidamente, chegaram a ser 200. Números que são hoje muito diferentes. Há apenas cerca de 30 crianças, jovens e adultos, de diferentes idades.

Mas estes dizem que são felizes, que há tempo para tarefas e para brincar e que concordam com um modelo baseado na ideia de família, em que cada um tem a sua função. Muitas vezes ajudam no refeitório, varrem as ruas ou ajudam em tarefas agrícolas, sobretudo nas vindimas e na apanha da batata.

 “Podia haver mais rapazes. Somos poucos”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

O “Guga” está a tratar das vacas. Tem um sorriso tímido. Envergonha-se perante a gravação de vídeo e as brincadeiras dos colegas atrás da câmara. Aos poucos conta que se chama Sérgio Pinho, tem 22 anos e que está na Casa do Gaiato “há já muito tempo”. Quanto? Não sabe bem. Sabe que veio de Lisboa e que gosta de estar ali.

“Já estive na carpintaria, depois fui para a cozinha. Neste momento tomo conta da vacaria, tiro o leite, dou comida às vacas e ajudo, às vezes, no campo”, conta. Às vezes os trabalhos cansam, não esconde. São muitas vacas para tratar, mas desde que veio para o Gaiato aprendeu muita coisa, garante. Lidar com os outros rapazes nem sempre é fácil. “Às vezes são bons e outras vezes são maus, mas gosto de estar aqui”, diz Sérgio Pinho.

Um dia pensa sair dali. Trabalhar. Só que ainda não sabe em que área. O Pai Américo, define, foi “um homem bom” e, nesta Casa, “podia haver mais rapazes”. “Somos poucos”, sentencia.

“Para sermos uma família é preciso cada um ter a sua obrigação”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

As dúvidas de Guga são certezas para Bruno Alexandre, gaiato desde 2012. Com 19 anos, o natural de Mação, Santarém, recorda que a avó, que sofreu um acidente vascular cerebral ficou sem condições para cuidar dele. “O melhor que tive na vida foi mesmo vir para cá”, afirma, não escondendo que, no início, conviver com tanta gente quando vinha de uma pequena aldeia rural não foi fácil.

“Hoje em dia sinto-me uma pessoa mudada, diferente, um homem, podemos dizer”, assegura. “Tornei-me mais homem graças à Casa”, reitera o jovem, sustentando que concorda com o modelo de educação existente. “Este é um modelo muito bom. Nós, nas nossas próprias casas, também convivemos e ajudamos os nossos pais. Para sermos uma família é preciso cada um ter a sua obrigação”, acredita Bruno Alexandre.

Na Casa do Gaiato de Paço de Sousa faz o que é preciso. Ao fim-de-semana põe em prática o que anda a aprender no curso de cozinha, mas no dia da nossa visita ajudava nos trabalhos agrícolas.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

“Conviver com os outros, ser mais humilde e ter mais união foram os três pontos mais marcantes que acho que tive até agora. O meu objectivo é ser alguém na vida. Para já, quero ajudar o máximo a casa, que também me ajudou a mim, e, a partir daí, seguir o meu caminho”, explica.

“Fui bem educado, ensinaram-me a trabalhar e a desenrascar”

Grande parte das crianças e jovens que estão na casa vieram da Guiné. É o caso de Carlinhos Ié, de 18 anos. Está na Casa do Gaiato há cerca de sete anos e sonha ser jogador de futebol. Um sonho comum por ali.

Foi aliciado por esse desejo que veio, sem hesitar, para Paço de Sousa. “Quando cheguei achei engraçado. Como eu só pensava em jogar futebol o meu pai disse ‘tens lá campo de futebol e podes jogar todos os dias’ e eu nem me preocupei. Entrei logo no carro e toca a vir”, resume.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Antes morava em Carcavelos com o pai de quem sentiu a sua ausência, no início. “Tinha o meu pai fora e estava habituado a estar sempre perto dele, mas com o hábito de estar com os meus colegas acabei por me habituar e esqueço sempre”, conta.

Ali, garante, sempre houve tempo para brincar e tempo para as tarefas. “Faço um pouco de tudo, desde limpar a quinta, ajudar no refeitório, limpar as casas… o que me mandam”, explica. “São tarefas fáceis e ensinam-nos, em primeiro lugar, a ajudar a família. Depois, quando tivermos a nossa casa e estivermos sós, saberemos ter a casa organizada e tudo limpo”, defende Carlinhos Ié.

“Fui bem educado, ensinaram-me a trabalhar e a desenrascar”, afirma o jovem que joga na equipa sénior da Casa.

“Chegar aqui foi bom, mas era muito diferente”

Mais pequenos, mas também sonhadores, são Ratzinquer e Quintino Tchuda, irmãos guineenses de 12 e 10 anos. Estão na Casa do Gaiato de Paço de Sousa há quatro anos.

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Moravam em Lisboa com a mãe e irmãos mais velhos. Não iam à escola. “Chegar aqui foi bom, mas era muito diferente. Aqui mudei o comportamento, conheci novos amigos, comecei a trabalhar mais. Faço qualquer coisa. Costumo ir para o refeitório, varrer, sachar as ervas e coisas assim”, exemplifica o jovem.

Quintino assume que chegou a um mundo desconhecido, mas diz que se habituou rápido e ganhou confiança e respeito pelas pessoas. “Tenho muitos amigos cá. Alguns da minha idade, outros não”, conta. “Cá jogo futebol, brinco, trabalho. Em casa não fazia tarefas”, reconhece.

Ambos confessam que preferiam estar com a mãe, que vêem às vezes. “Ela vem cá ou eu vou lá. Gostava de a ver mais vezes”, refere Ratzinquer. “Preferia estar com a minha mãe”, acrescenta Quintino, reconhecendo que ter o irmão por perto ajuda.

Também querem ser jogadores de futebol. “Eu jogo como ala ou defesa, mas também marco golos”, diz Ratzinquer. Quintino tem como ídolos Neymar e Messi.

Viver ali é parecido com uma família, sustenta Ratzinquer.

“Todos são meus amigos. Vivemos aqui juntos e somos todos irmãos”

Foto: Fernanda Pinto/Verdadeiro Olhar

Manelinho Comba, da Guiné, tinha apenas dois anos quando chegou a Paço de Sousa. Hoje tem 11 anos e garante que tem muitos amigos. “Todos são meus amigos. Vivemos aqui juntos e somos todos irmãos”, afirma.

Brinca, faz as tarefas, vai à escola. É assim o seu dia. Ajuda no refeitório, nas vindimas, na apanha das batatas e varre folhas. É normal e, às vezes, divertido, realça. “Brinco com os meus colegas, no parque, às vezes fico a passear à volta da casa, às vezes venho jogar futebol. Temos muitas horas para brincar”, diz.

“O que eu aprendi aqui é a portar-me bem, tirar boas notas na escola e jogar bem futebol, conta o menino. “No Natal ganhamos prendas. Aqui come-se bem. Sou feliz aqui”, termina Manelinho.