Chamam-se “Marias”. São muitas, de vários tamanhos e feitios. Homenageiam divas da música, a cultura portuguesa, poetisas, artistas, personalidades religiosas… São bonecas de papel. Mas são mais do que isso, garante a autora do projecto Marias Paperdolls, Cláudia Nair Oliveira. Para a designer têxtil de Valongo cada peça tem alma e identidade própria e é mais do que um objecto de decoração.
As Marias contam histórias, retratam tradições, defendem causas. E são mesmo quase filhas. “São um pedacinho de mim”, reconhece a artista.
Estas Marias já deram origem a várias exposições, já estiveram no salão internacional de decoração e têxteis para o lar Maison & Objet, que decorre em França, e já andam por outros países como Espanha, Itália, Bélgica Canadá ou Japão.
Às bonecas que fez perdeu a conta (parou de contar nas 500). No ano passado vendeu mais de 250.
Não brincava com bonecas
Quando era pequena, Cláudia não se lembra de brincar com bonecas. Cresceu nas imediações da estação de Valongo e os dias eram passados em brincadeiras ao ar livre, nos montes, com os quatro irmãos. “Havia muita liberdade. Foi uma infância feliz e de muitas aventuras”, garante.
Proveniente de uma família humilde, cujos pais regressaram de Angola e tiveram que recomeçar do zero, cabia muitas vezes a Cláudia e à irmã mais velha tomar conta dos três irmãos (gémeos) mais novos. Não havia muitos brinquedos, mas havia imaginação para transformar tudo em novas brincadeiras, recorda a artista.
Também da juventude, vem o gosto pelo trabalho manual e pela costura. “Sempre gostei muito de mexer com as mãos. A minha mãe costumava costurar e eu adorava isso. A maior parte dos meus vestidos de hoje ainda são feitos pela minha mãe e isso dá-nos muitos momentos de partilha”, conta.
Por isso, a escolha pelo curso de Design Têxtil do Citex surgiu como natural. Foi lá que tudo começou. Foi daí que partiu a busca por uma tela onde Cláudia Nair Oliveira pudesse expressar a sua criatividade. E foi assim que nasceram as Marias, em 2011, na altura em parceria com três pessoas. “Fiz ilustração em vários tipos de suporte, até encontrar esta tela que me preencheu completamente”, recorda a designer.
Ao conceito contemporâneo foi ainda associada uma abordagem ambiental. Daí o uso de jornais e papéis velhos para dar vida a estas peças entre a simplicidade do artesanato e a grandeza da arte.
E porquê “Marias”? “Queríamos um nome tipicamente português e todas as famílias têm a sua Maria”, justifica.
Cada Maria conta uma história e passa uma mensagem
Depois de uma colecção de Marias com trajes portugueses, seguiu-se uma outra inspirada na obra da poetisa Florbela Espanca, com a qual se identifica. “O meu mundo não é como o dos outros, quero mais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito…”, é uma das frases da autora que Cláudia usa para se definir. Depois, já retratou a Bugiada e Mouriscada, tradição de Sobrado, Valongo, mas foi com a colecção “Marias – Por todas as Meninas e Mulheres”, criada no âmbito da campanha de denúncia de violência e discriminação sobre o género feminino “Continuamos à Espera”, que expôs em 2014, no Centro Cultural de Cascais, e que contou com o apoio de Catarina Furtado, que o projecto encontrou o seu caminho e começou a crescer “a uma velocidade alucinante”.
“Convidei 13 ilustradores nacionais, como André da Loba, Esgar Acelerado, Sara Macedo, António Soares, Júlio Vanzeler ou Kammuz, e cada um pintou uma boneca. Foram depois doadas”, explica. Ainda na defesa de causas, criou uma boneca inspirada na Gisberta, que foi a imagem do Centro Gis.
Seguiram-se muitas outras colecções, inspiradas na azulejaria portuguesa, nos trajes de Viana do Castelo, em personalidades como Frida Khalo ou Maria Madalena ou em divas da música. Recentemente criou Marias que representam as logomarcas do concelho de Valongo, como a Maria Justa (serras), a Maria Padeira (pão e biscoito) ou a Maria Brinquedo (brinquedo tradicional) e também uma colecção intitulada Mulheres de Negro, ironicamente recheada de cor.
Cada Maria conta uma história e é um símbolo, passa uma mensagem. “Sempre quis criar bonecas únicas para pessoas especiais”, explica, mas admite que tem, muitas vezes, de fazer repetições. O mercado assim o exige. Mas não é isso que gosta de fazer. Gosta de criar.
“Há Marias que não vendo, mas que dou a pessoas muito importantes na minha vida”
E se cada Maria conta uma história é porque cada Maria nasce de uma história. “Raramente crio uma Maria só porque me apetece. Tenho que ter conhecimento de causa para criar. Quando fiz a colecção de Marias Madalenas andei com uma bíblia de um lado para o outro”, conta. O mesmo aconteceu com a colecção as Mulheres e a Música, inspirada em Amy Winehouse, Janis Joplin, Nina Simone, Marlene Dietrich, Maria Callas, Édith Piaf, Cesária Evora ou Amália Rodrigues, que a fez ouvir vezes sem conta a música dessas artistas.
É que, a cada trabalho, Cláudia Nair Oliveira dedica intensas horas de pesquisa que vai da leitura à análise de documentários, filmes e fotos sobre o tema ou personalidade em que busca inspiração.
“As Marias fazem-me conhecer histórias fabulosas de mulheres sem tamanho”, salienta.
Mas as Marias são ainda mais que isso. “Sinto que são minhas filhas – não tenho filhos -, que são pedacinhos de mim”, admite a artista. “Há Marias que demoro muito tempo a deixar que se vão embora. Há algumas que não quero vender e há uma a que coloquei um preço exorbitante para que isso não aconteça. E há Marias que não vendo, mas que dou a pessoas muito importantes na minha vida”, confessa.
“Sou muito feliz com aquilo que faço e espero que quem adquira uma Maria tenha um momento especial”, afirma a designer têxtil. “Com elas o tempo voa, não me canso e não há monotonia”, acrescenta.
“Lá fora dão mais valor ao meu trabalho. Não o vêm como artesanato mas como objecto de arte”
As Marias têm diferentes tamanhos, do “S” ao “XXL”. São feitas de papel de jornal ou revista e de balões, cola e água. O processo de secagem das bolas que dão forma às bonecas demora cerca de uma semana. Depois é montada a boneca que é pintada com tinta acrílica. Cláudia vai trabalhando em várias Marias ao mesmo tempo. E há projectos que chegam mesmo a ficar parados à espera do momento certo. É o caso da única Maria que tem em casa, um projecto inacabado de que ainda não desistiu. Normalmente trabalha em ateliê, tendo actualmente um em Valongo e um no Porto.
Podem ser adquiridas em várias lojas de decoração e galerias a partir dos 60 euros. Internacionalmente atingem preços muito superiores aos praticados em Portugal.
O primeiro espaço onde se mostrou internacionalmente foi a Maison et Objet, em França. Mas as Marias já chegaram a vários países como Espanha, Itália, Bélgica Canadá ou Japão. E o mundo é o limite. Quer que as Marias continuem a viajar. “Sou uma pessoa insatisfeita. Quando estou a atingir algo já quero mais. Acho sempre que as Marias podem ir mais longe e tocar em mais pessoas”, defende. Por isso, a aposta passará por expor noutros países. O próximo objectivo é a Dinamarca. “Lá fora dão mais valor ao meu trabalho. Não o vêm como artesanato mas como objecto de arte”, salienta.
A pergunta “quantas Marias já fez?” fica por responder. Não sabe. Parou de contar nas 500. Já terão sido muitas mais. Só no ano passado vendeu 250 Marias Paperdolls.