Verdadeiro Olhar

“O acesso efectivo aos cuidados em fim de vida deverá anteceder a discussão sobre a legalização da eutanásia”

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Daniel Torres Gonçalves, advogado de Valongo, integra o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, entidade que, ontem, emitiu quatro pareceres negativos sobre as propostas que serão debatidas esta quinta-feira, na Assembleia da República, sobre a morte medicamente assistida, vulgarmente designada por eutanásia.

Ao Verdadeiro Olhar, não se diz “taxativamente contra a eutanásia e o suicídio assistido”, mas fala de um tema que deve ser abordado “com prudência” numa discussão que não deve ser marcada por visões a preto e branco e sim por “muitos tons de cinza”. Daniel Torres Gonçalves entende ainda que, face ao défice de cuidados paliativos existente em Portugal não se trata de substituir a eutanásia e o suicídio assistido por cuidados paliativos, mas antes anteceder a discussão sobre a legalização dos pedidos de morte por sofrimento de um acesso efectivo aos cuidados em fim de vida.

Tem dúvidas sobre um referendo, acredita que os partidos estão a querer debater “à pressa” e sustenta que face às recusas já manifestadas por médicos e enfermeiros em exercer a eutanásia caso seja aprovada, “existe o risco de o Estado não dispor dos meios necessários para a aplicação das medidas que se pretendem implementar”.

Além de advogado, Daniel Torres Gonçalves é docente do ensino superior, presidente da AMEDIJURIS – Associação Portuguesa Direito e Medicina. É licenciado em Direito pela Universidade Lusíada do Porto, mestre em Innovation, Technology and the Law pela Universidade de Edimburgo e pós-graduado em Direito da Medicina pela Universidade Católica Portuguesa.

 

Tendo em conta que integra o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), é contra a morte medicamente assistida em qualquer situação/circunstância?

Enquanto membro do CNECV tive a oportunidade de participar num debate longo e complexo relativamente às decisões em final de vida. Este debate ocorreu no âmbito do ciclo de debates organizados pelo CNECV ao longo do ano de 2017, bem como aquando da discussão do parecer emitido em 2018 e agora para a emissão dos quatro pareceres em 2020. Cada um dos pareceres debruça-se sobre um diploma em concreto, tendo até ao momento considerado que os projectos de lei não merecem aprovação ética. Estas posições foram o resultado de uma ampla discussão no interior do Conselho, de um grande esforço para que existisse um consenso alargado, que foi conseguido. Tal, contudo, não corresponde à posição relativa à eutanásia e suicídio ajudado em geral ou, conforme a pergunta, em qualquer situação ou circunstância. Estou certo de que não existiria uma maioria tão ampla no Conselho se a posição a adoptar fosse sobre o tema em geral.

Respondendo directamente à pergunta colocada, subscrevi cada um dos pareceres que censuram os vários diplomas apresentados. Não afirmo, contudo, taxativamente ser contra a eutanásia e o suicídio assistido em qualquer circunstância. É um tema que vale a pena discutir, mas sempre com grande ponderação e prudência. É uma matéria que se dispõe mais a perguntas do que a respostas. Por isso, tenho inveja daqueles que têm grandes certezas sobre o tema, porque eu não as tenho.

 

A Assembleia da República debate esta quinta-feira cinco projectos de lei para a despenalização da morte assistida propostos pelo Bloco de Esquerda, Partido Socialista, Partido das Pessoas dos Animais e da Natureza, Partido Os Verdes e Iniciativa Liberal. Na sua perspectiva, faz sentido debater agora o tema depois do chumbo das propostas de despenalização da eutanásia em Maio de 2018? Querem debater o tema “à pressa”?

O tema da eutanásia e do suicídio assistido é de grande complexidade e exige grande ponderação, estudo e análise. Não se compadece com uma abordagem apressada. Tendo este tema sido objecto de deliberação da Assembleia da República há menos de dois anos, questiono se existe na sociedade portuguesa uma premência tal que justifique o regresso deste tema à ordem do dia desde já. Tenho as minhas dúvidas.

Ouvindo alguns debates, parece que a discussão é entre a defesa da autonomia privada e a defesa da sacralidade da vida. Estes argumentos são muito redutores e marcam apenas o início da discussão. Uma discussão profunda sobre o tema nunca será marcada por branco ou preto vincados, mas antes por muitos tons de cinza.

 

Coloca-se a questão de falta de legitimidade democrática, já que alguns dos partidos que agora propõem a eutanásia não a colocaram no seu programa eleitoral, nomeadamente o PS?

O Parlamento goza de toda a legitimidade democrática, conferida pelas eleições. Acho, porém, que a democracia sairia a ganhar se este tema, que agora se percebe ser tão relevante para alguns partidos, tivesse constado dos respectivos programas eleitorais.

 

As cinco propostas apresentadas deixam de fora menores e pessoas incapazes. Variam depois nos termos usados, mas na generalidade apelam à não punição da morte assistida em casos em que o doente está “em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal”, “padeça inequivocamente de uma doença sem cura, irreversível e fatal, causadora de um sofrimento intolerável e atroz” ou com lesão “amplamente incapacitante e definitiva”, esteja em sofrimento “duradouro e insuportável” ou seja “portador de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente, ou em situação de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva”. Em todos os casos o pedido, reiterado e consciente, tem de partir do doente, e há uma avaliação médica associada, podendo o processo ser parado em qualquer altura. É legítimo que alguém que não tem qualidade de vida peça para morrer de forma digna?

A dignidade existe em cada um e, de resto, está na base da nossa República. A nossa Constituição afirma-o claramente. Claro que a dignidade, para ser plena, deve ser vivenciada por cada um. Uma situação de doença, de debilidade, vulnerabilidade pode fazer-nos questionar a manutenção dessa dignidade. Mas, o sofrimento, só por si, não é indigno.

Há várias vertentes nesta questão, mas saliento duas. Por um lado, é fundamental que a pessoa doente decida de forma livre e em pleno uso das suas capacidades. Porém, devemos reconhecer que existem circunstâncias, internas e externas, que condicionam o doente. Desde logo, existe a vulnerabilidade própria da doença em causa. Depois, existe o risco de o sentimento de ausência de dignidade ser, directa ou indirectamente, intencionalmente ou não, criado no espírito do paciente. Quantos de nós já ouvimos pessoas idosas, com alguma morbilidade, afirmar que não querem ser um fardo?

Por outro lado, o grande argumento a favor da eutanásia e do suicídio ajudado é o respeito pela autonomia do doente. Ora, esta autonomia só será verdadeiramente respeitada no caso de ser dado ao doente uma alternativa para a problema que ele enfrenta, que é o sofrimento.

 

Defende, à semelhança de outras personalidades, que parte dos problemas levantados pela eutanásia ficariam resolvidos com um reforço de cuidados paliativos no país?

Existe uma premissa que entendo ser importante não perder de vista. Conforme se apresentam no diploma em análise, a eutanásia e o suicídio assistido surgem como resposta do Estado a um pedido de alívio do sofrimento. Efetivamente, há que reconhecer que outras respostas podem existir, nomeadamente ao nível dos cuidados em fim de vida.

A minha posição, que tive a oportunidade de expor com maior detalhe nas declarações de voto que apresentei em cada um dos pareceres aprovados há poucos dias, sustenta que, face à falta de resposta do Estado ao nível dos cuidados em fim de vida e à falta de informação generalizada dos cidadãos quanto a tais cuidados, será eticamente questionável a validade do consentimento de um doente que opta por fazer um pedido de morte sem que lhe seja proporcionada uma escolha alternativa.

Assim, a minha opinião vai no sentido não de que os cuidados paliativos devem substituir a eutanásia e o suicídio ajudado, mas antes que o acesso efectivo aos cuidados em fim de vida deverá anteceder a discussão sobre a legalização e regulação da eutanásia e suicídio ajudado em face de um pedido de morte por sofrimento não paliável.

 

Como caracteriza os cuidados paliativos em Portugal? São insuficientes?

Os estudos indicam que existe um marcado défice da oferta no nosso país. Os números apontam que os cuidados paliativos, que não se limitam ao final da vida, chegam apenas a uma fração dos doentes que deles necessitam – entre 10% e 30%.

 

O que vê de errado nas propostas destes partidos? Não são criados, em termos legais, mecanismos de controlo para evitar que se generalize a morte assistida/suicídio assistido? O que levou o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida a “chumbar” através de parecer as propostas analisadas?

Permita-me dizer que estes não são tempos fáceis para se assumirem posições moderadas. Existe muita gente com muitas certezas e opiniões muito vincadas. Na verdade, são essas as opiniões que têm maior facilidade em obter tempo de antena. Ora, o CNECV não entra em competições mediáticas nem tem uma opinião que possa ser reduzida a poucas linhas.

Nos projectos em discussão, há vários pontos eticamente criticáveis. Desde logo, não existem estudos que suportem as opções legislativas apontadas. Depois, os projetos não diferenciam convenientemente as soluções adoptadas – considerar a eutanásia é muito diferente de considerar o suicídio ajudado. Por fim, mencionaria o facto de os diplomas não terem uma abordagem que vise resolver um problema, que é o do sofrimento em final de vida, mas antes vincarem a autonomia privada do doente como fundamento para legislar, quando este ponto, repito, marca só o início da discussão.

 

Foram já várias as entidades a dar parecer negativo a estas propostas. A Ordem dos Médicos e a dos Enfermeiros já se manifestaram contra a eutanásia e o suicídio assistido. Vários movimentos pró-vida também se mostraram contra a despenalização da eutanásia. A Igreja, entre outras entidades, que antes esteve contra, defende agora um referendo. Perante esta contestação, o Parlamento devia adiar/chumbar estas propostas e debater mais a fundo a questão antes de tomar uma decisão? Isto mostra que Portugal não está pronto para legislar sobre a eutanásia?

A questão que levanta, que é muito pertinente, mostra um risco que não deve ser desconsiderado, que se prende com a capacidade de o Estado fornecer uma resposta para o respeito pelo direito que estará a consagrar. Isto é, existe o risco de o Estado não dispor dos meios necessários para a aplicação das medidas que se pretendem implementar. Na verdade, não existem estudos que sustentem os projectos de lei, nomeadamente quer ao nível do número de doentes que potencialmente estariam em condições de optar pela eutanásia ou o suicídio ajudado; quer ao nível do número de profissionais de saúde disponíveis para cumprir tais medidas. Os diplomas colocam um peso importante sobre os médicos e aquilo que vamos ouvindo é que eles não consideram a eutanásia e o suicídio ajudado como um acto médico e que, em geral, não estarão disponíveis para cumprir tal pedido.

 

No que toca à ideia de referendo, para a qual está a ser elaborada uma petição, acredita que faz sentido avançar com ele? A população está esclarecida sobre o tema?

Tenho dúvidas sobre a opção de referendar uma matéria deste género. Contudo, compreendo a posição daqueles que defendem que o referendo pode ser uma forma de reforçar a legitimidade de uma decisão sobre uma matéria que esteve ausente da discussão política aquando das eleições legislativas do ano passado.

 

Já houve grupos de saúde a afirmar que não vão praticar eutanásia nas suas instalações caso seja despenalizada. Muitos médicos e enfermeiros também se recusam a fazê-lo, apesar de todas as propostas definirem que serão os médicos a ser chamados a praticar a morte assistida. Pedir a médicos que “matem” os doentes não é legítimo face ao juramento que fazem?

A posição clara da Ordem dos Médicos, bem como as posições de médicos que têm vindo a público, é a de uma oposição à eutanásia e ao suicídio ajudado, não os considerando actos médicos. Esta questão é muito relevante e não é só para os médicos, mas também para os restantes profissionais da saúde envolvidos no processo, como enfermeiros e farmacêuticos.

 

Outros países na Europa, como a Holanda, a Bélgica ou o Luxemburgo já permitem há alguns anos a eutanásia. Há outros que permitem uma “eutanásia passiva” (quando o paciente recusa cuidados e acaba por morrer). O que é que Portugal deve aprender com estes exemplos?

Na Europa, a eutanásia só é possível nos três países que menciona e na Suíça, em nenhum outro. Uma das debilidades da discussão pública sobre este tema, e que, na minha óptica, dá razão aos que defendem haver falta dela, prende-se com a necessidade de clarificar conceitos. Tem sido muito habitual ouvir defensores da eutanásia aplicar o conceito de forma errónea. Por exemplo, falar na eutanásia em pessoas que estejam em estado vegetativo. Isto não é possível e nenhum dos projectos o prevê, e bem. Se a pessoa não está capaz de expressar a sua vontade, não poderá optar pela eutanásia. E, uma vez que a vontade tem de ser actual, uma vez que pode variar com o tempo, não poderá haver uma decisão antecipada quanto à eutanásia.

Outro exemplo é aquele de que fala, da eutanásia passiva. Note que os projectos de lei visam exclusivamente a eutanásia activa. Hoje, em Portugal, a eutanásia passiva já é possível. Um paciente pode optar, até antecipadamente através do testamento vital, recusar tratamentos. Mais, se o paciente recusa um tratamento, mesmo que este vise salvá-lo, e o médico o trata à sua revelia, estamos perante um ilícito. E, note-se que, eticamente, pedir a morte é muito diferente de recusar um tratamento que nos possa salvar.