Os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial tinham o propósito firme de construir um mundo novo. Não apenas reerguer as ruínas destruídas pelas bombas, mas sobretudo lutar pela liberdade e pela harmonia entre os povos. Desafio grandioso e concreto, para que as atrocidades cometidas à escala mundial pelos nazis e seus aliados não se voltassem a repetir.
Depois daquela tragédia imensa, muitos —em particular na Alemanha— tomaram consciência do efeito corrosivo do medo, capaz de degradar sociedades inteiras até abismos inimagináveis. Hitler, ou Stalin, nunca teriam feito milhões de vítimas, sem gigantescas máquinas de funcionários subservientes.
Qual foi a responsabilidade de cada um deles? Aparentemente, quase ninguém teve culpa. A dactilógrafa apenas escreveu uns papéis à máquina; o carteiro apenas entregou a correspondência; o polícia apenas cumpriu as ordens que recebeu do tribunal; o contabilista apenas tratou de que todos recebessem pontualmente o salário; o funcionário apenas cumpriu o horário do serviço; o maquinista do comboio apenas fez as viagens que lhe mandaram; o guarda-freios apenas garantiu a eficiência da circulação … Cada um desempenhou um minúsculo papel, mas o resultado foi o holocausto organizado de milhões de inocentes.
Este paradoxo fez com que muitos, na geração posterior à Segunda Guerra Mundial, compreendessem a dimensão ética de todas as acções humanas. Qualquer tarefa pode colaborar numa obra maravilhosa, ou numa obra maquiavélica; não vale «ganhar a vida», esquecendo as consequências e o contexto daquilo que se faz.
Aqui, entra o medo, como ingrediente fundamental da desculpa colectiva. Para evitar algo desagradável, muitos prestam-se a torcer ligeiramente a realidade e a justiça. Parece-lhes um ajuste sem importância, ainda que a Guerra tenha mostrado que a multidão dos pequenos desvios impõe tiranias e industrializa o mal. As pequenas cobardias produzem estragos.
Foi neste contexto, no final da Guerra, que nasceu o desejo, largamente partilhado pela humanidade, de proclamar a dignidade da pessoa humana e enunciar as correspondentes exigências éticas. Até então, muitos classificavam a moral como um tema abstracto; em face da Guerra, entenderam que a moral é a base indispensável da vida social e da paz.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 1948 com 48 votos a favor e nenhum contra. Nesse momento de pós-guerra, a pressão de todo o mundo foi tão grande que até os países comunistas, totalmente contrários a quaisquer direitos humanos, preferiram abster-se, em vez de votar contra (além dos comunistas, abstiveram-se a África do Sul e a Arábia Saudita).
Passaram-se entretanto várias gerações e a questão ética esmoreceu. A sociedade burguesa habitou-se a tornear a justiça sem a rejeitar declaradamente, voltaram as pequenas cedências justificadas pelo medo. Porque ninguém quer ser herói, todos preferem pagar um pouco e evitar problemas.
É assim que, nos nossos dias, a tirania avança em várias frentes. De um lado, a brutalidade do imperialismo russo, devorando dezenas de milhar de vidas com a inconsciência moral de quem está a jogar xadrez. Do outro lado, com a desculpa de repor a «verdade», o sectarismo ideológico que conquista poder sem que quase ninguém se oponha.
As poderosas empresas informáticas, a quem devemos comunicações gratuitas, informações gratuitas, filmes, música e divertimentos gratuitos, propuseram-se controlar as notícias «verdadeiras» e as opiniões «correctas». Há um ano, a Presidente da Comissão Europeia rejeitou este arbítrio e declarou que os serviços informáticos disponibilizados ao público têm de ser abertos e transparentes. Mas, na semana passada, as grandes empresas do sector propuseram-se melhorar a «qualidade» dos artigos que circulam nas redes e dois Comissários da União Europeia vieram saudar alegremente a iniciativa!
Pequenos abusos, pequenos pretextos, pequeninos passos… A geração que viveu a Segunda Guerra Mundial teria reagido com veemência, mas hoje poucos reparam que estamos a deslizar para a tirania.
Esta semana, o Ministério Público português decidiu secundar a proposta de um Gabinete dependente da Presidência do Conselho de Ministros para que um tribunal retire duas crianças à família, para poderem ser sujeitas a aulas de educação sexual na escola. Pequenos percalços, funcionários com medo, pequenas transigências, evitar problemas. Um dia, volta o horror que serviu de inspiração à Declaração Universal dos Direitos Humanos.